Demissão por justa causa do empregado que se recusa a receber o imunizante contra COVID-19

Por Dr. Clodoaldo Andrade Jr.
| 20 de outubro de 2021

O direito à saúde é prerrogativa fundamental esculpida no Artigo 196 da Constituição Federal brasileira. De acordo com a inteligência deste princípio deve haver medidas estatais para sua efetivação, como a adoção de políticas públicas visando garantir o acesso universal a saúde pública, a destinação de recursos e financiamento adequado aos entes responsáveis pelas instituições de saúde, e o ato de evitar riscos de agravo a saúde dos indivíduos, por exemplo.

Alinhado com o direito fundamental a saúde, existe o princípio da segurança sanitária, que impõe ao Estado o dever de fazer com que os indivíduos não adoeçam por motivos considerados evitáveis (artigos. 196; 198, II da Constituição). Por certo, tal princípio, para ser efetivamente colocado em prática, deve haver uma via de mão dupla.

De um lado o Estado, fornecendo tudo o que for necessário para que a população possa evitar e prevenir certos tipos de doenças e por outro a conscientização das pessoas no sentido de utilizar corretamente os meios disponíveis, colaborando com o bem-estar de toda a coletividade.

Atualmente, com a pandemia global de COVID-19, esta relação entre o Estado disponibilizando os meios necessários e as pessoas fazendo uso adequado destes meios, sofreu alguns abalos, principalmente no que diz respeito a possibilidade de tornar obrigatória a vacinação contra o Coronavírus.

No presente momento, a meta de redução do risco de contágio pelo coronavírus exige medidas preventivas como a vacinação coletiva da população, que se afigura como relevante e impõe deveres aos agentes públicos e aos indivíduos, buscando evitar a propagação desenfreada do vírus.

Contudo, muitos vêm se recusando a se imunizar, aduzindo razões de cunho pessoal, com fulcro na proteção conferida pela carta magna brasileira aos direitos individuais.

A judicialização desta contenda se deu, inicialmente, perante o Supremo Tribunal Federal[1] que firmou entendimento no sentido de que a preservação da saúde publica, embora esteja inserido nas responsabilidades do Estado, também é dever da população. A vacina, que não pode ser reduzida a um direito individual por sua finalidade ser a proteção coletiva, se insere enfaticamente no rol de deveres, como direito fundamental de cunho coletivo. Neste norte, tanto o ato de privilegiar ações preventivas, quanto o dever da comunidade em se vacinar, encontram-se esculpidos na Carta Magna.

Em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski afirmou que o Estado é obrigado a proporcionar a toda a população interessada o acesso à vacina para prevenção da Covid-19, mas que também cabe aos indivíduos a responsabilidade de se vacinar, conforme extrai-se do seguinte trecho:

 “A saúde pública não pode ser prejudicada por pessoas que deliberadamente se recusam a ser vacinadas, acreditando que, ainda assim, serão egoisticamente beneficiárias da imunidade de rebanho”.

Seguindo no entendimento do STF de que a vacinação é um pacto coletivo e que a recusa a receber o imunizante poderá vir a ferir o direito a saúde de toda a comunidade nacional, a corte decidiu que é legal e constitucional a imposição de medidas restritivas (como multa, impedimento de frequentar determinados lugares, matricular-se em estabelecimentos de ensino, entre outras) para quem decidir não se imunizar contra o vírus, declarando, em um placar de dez votos contra um, que a vacinação deve ser obrigatória, mas não forçada.

Por conseguinte, novas dúvidas surgiram nas demais esferas do direito, em especial com relação a legislação trabalhista, diante de casos de empregados demitidos por justa causa devido a recusa injustificada em se vacinar.

Antes de mais nada é preciso esclarecer que a demissão por justa causa possui um rol taxativo de hipóteses presente no Artigo 482 da Consolidação das Leis Trabalhistas[2]. Já a doutrina, considera a justa causa como a falta cometida pelo empregado, capaz de ilibar a boa-fé existente entre as partes, que pode ser de ordem contratual ou pessoal e tem o condão de tornar impossível ou indesejável o prosseguimento da relação laboral.

Nas palavras de Delgado[3]:

“… justa causa é o motivo relevante, previsto legalmente, que autoriza a resolução do contrato de trabalho por culpa do sujeito comitente da infração – no caso, o empregado. Trata-se, pois, da conduta tipificada em lei que autoriza a resolução do contrato de trabalho por culpa do trabalhador”.

Sendo assim, primeiramente vale frisar que a recusa em tomar vacina, nos casos em que houver a determinação expressa do empregador poderá configurar ato de insubordinação ou indisciplina. Não obstante, a já mencionada Lei nº 13.979, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento de emergência da saúde pública sobre o coronavírus prevê em seu artigo 3º, inciso III, alínea “d”, que uma das medidas autorizadas para o enfrentamento é a vacinação.

Neste diapasão, é possível ao empregador exigir a realização de exames médicos; testes laboratoriais; coleta de amostras clínicas; vacinação e outras medidas profiláticas ou tratamentos médicos específicos que possam interferir diretamente na salubridade do ambiente laboral. Respeitando sempre os limites da privacidade do indivíduo.

De igual maneira, o entendimento do STF especificamente sobre a seara trabalhista determina que, ainda que a Constituição assegure a proteção aos direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores, o interesse coletivo deve superar as convicções individuais, ainda mais em razão de que, nesta hipótese, certas convicções poderão colocar em risco a saúde e a vida de outras pessoas.

Acompanhando este raciocínio o Ministério Público do Trabalho também se manifestou favoravelmente a obrigatoriedade de vacinação, através da confecção de um guia técnico sobre as medidas referentes a COVID 19 no ambiente laboral, do qual se extrai o seguinte trecho:[4]

“A estratégia de vacinação é uma ferramenta de ação coletiva, cuja efetividade só será alcançada com a adesão individual. A vontade individual, por sua vez, não pode se sobrepor ao interesse coletivo, sob pena de se colocar em risco não apenas o grupo de trabalhadores em contato direto com pessoas infectadas no meio ambiente do trabalho, mas toda a sociedade”.

No entanto, ainda que este seja o entendimento da maioria dos órgãos ligados a justiça, por certo, não é unânime. E, sendo assim, algumas demandas vêm chegando à justiça do trabalho visando a reversão da demissão por justa causa fundada em recusa do empregado a se vacinar.

Recentemente um destes casos chegou ao segundo grau e a decisão do TRT2[5] se deu no sentido de confirmar a legalidade da demissão por justa causa, já reconhecida em sede de primeiro grau, negando o direito a conversão e ao recebimento das verbas rescisórias pela obreira.

Em primeira instância, a juíza da 2ª Vara do Trabalho de São Caetano do Sul (SP) julgou improcedente o pedido da autora, pois a necessidade de proteção da saúde de todos os trabalhadores e pacientes do hospital  na qual era prestado o serviço, deve se sobrepor ao direito individual de se abster da imunização.

A referida demanda versava sobre a recusa em receber a vacina por parte de uma auxiliar de limpeza que trabalhava em um hospital em São Caetano do Sul, São Paulo.

Em sede de contestação e contrarrazões os empregadores relataram que todas as medidas visando informar e conscientizar os funcionários acerca da obrigatoriedade e da importância de receber o imunizante, através de palestras e ações de cunho educacional, procedendo ainda dois dias para a imunização exclusiva dos funcionários, sendo que em ambas as oportunidades a reclamante recusou-se a tomar a vacina.

 A respeito das alegações do empregador vale salientar que a justa causa deve sempre estar pautada nos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Diante disto, pesa o fato de que a funcionária não se recusou apenas uma vez a receber o imunizante e que estava plenamente ciente de que uma nova recusa ensejaria em sua demissão por justa causa, recebendo inclusive uma advertência, no mês anterior a decisão.  Tal entendimento está de acordo com a posição do MPT que se manifestou sobre o caso da seguinte forma:

“Diante de uma pandemia, como a de Covid-19, a vacinação individual é pressuposta para a imunização coletiva e controle da pandemia. Nesse contexto, se houver recusa injustificada do empregado à vacinação, pode caracterizar ato faltoso, nos termos da legislação. Todavia, a empresa não deve utilizar, de imediato, a pena máxima ou qualquer outra penalidade, sem antes informar ao trabalhador sobre os benefícios da vacina e a importância da vacinação coletiva, além de propiciar-lhe atendimento médico, com esclarecimentos sobre a eficácia e segurança do imunizante”[6]

No caso em apreço, também há de se levar em conta o fato de que se tratava de estabelecimento de saúde tornando ainda mais delicada a posição da reclamante em não se vacinar, uma vez que pessoas contaminadas pelo coronavírus transitavam diariamente pelo local.

Ademais, a recusa a vacina fora injustificada e se deu meramente por convicções políticas. Sendo assim, inexiste a possibilidade de inserir nas causas elencadas para a recusa como “justo motivo” como problemas de saúde ou alergias graves, por exemplo.

De acordo com os argumentos elencados, o desembargador Roberto Barros da Silva pontuou que a Organização Mundial de Saúde considera a vacinação como principal meio para contenção da Covid-19, afirmando que a vacinação é medida urgente para proteger a população e assegurar o retorno das atividades normais da sociedade.

Para fundamentar o seu voto o relator também invocou os dispositivos da já mencionada Lei 13.979/2020 que prevê a possibilidade de vacinação compulsória, a manifestação do STF sobre o tema e ainda os Artigos 157 e 158 da Consolidação das Leis Trabalhistas de forma implícita.

Na visão do desembargador a empresa cumpriu todas as disposições do Artigo 157, incisos II e III, no sentido de que cabe ao empregador instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais, além da adoção de medidas determinadas pelo órgão competente. Já a obreira desrespeitou o inciso II do Artigo 158 do mesmo diploma quando deixou de observar as normas de segurança e medicina do trabalho, conforme denota o seguinte trecho do voto:

“A bem da verdade, considerando a gravidade e a amplitude da pandemia, resta patente que se revelou inadequada a recusa da empregada que trabalha em ambiente hospitalar, em se submeter ao protocolo de vacinação previsto em norma nacional de imunização, e referendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), sobretudo se considerarmos que o imunizante disponibilizado de forma gratuita pelo Governo (vacina), foi devidamente aprovado pelo respectivo órgão regulador (ANVISA). Desse modo, considerando que a reclamada traçou estratégias para a prevenção da COVID19, divulgou informações e elaborou programa de conscientização para assegurar a adoção de medidas protetivas e a vacinação de seus colaboradores, não se mostra razoável aceitar que o interesse particular do empregado prevaleça sobre o interesse coletivo, pois, ao deixar de tomar a vacina, a reclamante realmente colocaria em risco a saúde dos seus colegas da empresa, bem como os demais profissionais que atuam no referido hospital, além de pacientes, e seus acompanhantes.”

Como se observa, o caso em comento é bastante específico, pois além de se tratar de uma obreira atuante na chamada “linha de frente da COVID”, dentro de um estabelecimento de saúde, houve ainda a recusa injustificada em receber o imunizante.

No entanto, casos nos quais o obreiro apresente motivações embasadas para não tomar a vacina, como nos já mencionados casos de alergia aos componentes da fórmula, por exemplo, ainda não há consenso acerca da continuidade da relação laboral e das medidas que deverão ser tomadas pelas empresas visando evitar as demissões.

Como medida mitigatória, em recente entrevista a presidente do TST Maria Cristina Peduzzi[7], alegou que nos casos em que a recusa a receber o imunizante for justificada e que houver a possibilidade de manter o obreiro na modalidade de trabalho remoto a empresa deverá dar continuidade a relação laboral.

 Hoje é de conhecimento geral que muito embora as medidas preventivas de higiene adequada e distanciamento social sejam muito importantes, as vacinas foram as grandes responsáveis pela diminuição dos casos de COVID-19 ao redor do globo. No Brasil foram, até o presente momento, mais de seiscentas mil mortes, e diante desta triste realidade não é plausível que as pessoas recusem a vacina baseadas em convicções sem embasamento clínico ou científico.

Por isso, nos casos em que o empregador procede de forma a conscientizar seus funcionários acerca da importância do imunizante, não poderá ser aceita a recusa injustificada, haja vista que o interesse particular não pode por em risco a saúde da coletividade.

Sendo assim, salientando que é dever do empregador manter a salubridade do ambiente laboral no qual são prestados os serviços e zelar pela segurança de todos os funcionários, é correta a medida que aplica a justa causa nos obreiros que recusem a se vacinar injustificadamente, desde que antes da demissão sejam feitas todas as advertências cabíveis e seja facultado ao obreiro a apresentação de suas razões, tendo em vista que tal medida prioriza a proteção da coletividade.

Por fim, insta salientar que atualmente há um projeto de lei de autoria da deputada Carla Zambelli (PL 149/2021), visando tornar ilegal a dispensa por justa causa nos casos em que o empregado se recusar a receber a vacina. Todavia,  atualmente o projeto encontra-se na fase de consulta pública e não possui enquadramento em pauta para votação. Lembrando, mais uma vez, que a ideia contida no projeto vai de encontro ao entendimento do MPT, do TST da OAB e do STF sobre o tema.


[1] (ADIs) 6586 e 6587 e ARE 1267879 sobre a constitucionalidade da LEI Nº 13.979, DE 6 DE FEVEREIRO DE 2020

[2] Art. 482 – Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador:

a) ato de improbidade;

b) incontinência de conduta ou mau procedimento;

c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador, e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço;

d) condenação criminal do empregado, passada em julgado, caso não tenha havido suspensão da execução da pena;

e) desídia no desempenho das respectivas funções;

f) embriaguez habitual ou em serviço;

g) violação de segredo da empresa;

h) ato de indisciplina ou de insubordinação;

i) abandono de emprego;

j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;

k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;

l) prática constante de jogos de azar.

m) perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o exercício da profissão, em decorrência de conduta dolosa do empregado.

[3] Delgado, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho – 15.ed. – São Paulo: LTr, 2016. Página 1.320.

[4] Ministério Público do Trabalho. Disponível em: https://mpt.mp.br/pgt/noticias/estudo_tecnico_de_vacinacao_gt_covid_19_versao_final_28_de_janeiro-sem-marca-dagua-2.pdf

[5] (TRT-2 – RORSum: 10001222420215020472 SP, Relator: ROBERTO BARROS DA SILVA, 13ª Turma – Cadeira 5, Data de Publicação: 19/07/2021)

[6]Recusa de vacinação gera demissão por justa causa. Diário do Comércio. Disponível em :https://diariodocomercio.com.br/legislacao/recusa-de-vacinacao-gera-demissao-por-justa causa/?fb_comment_id=4178729815581141_4227381047382684

[7]Empresa pode demitir quem recusar a vacina, diz presidente do TST… – Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/09/14/empresa-tem-direito-de-demitir-quem-recusar-a-vacina-diz-presidente-do-tst.htm

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